Revolução dos Cravos, utopia que não morre

Mesmo efêmera, aventura política portuguesa expressou desejo de romper a banalidade da vida-mercadoria. Murcharam tua festa, pá! Mas o ímpeto de participação popular aguarda novas brechas. Um livro em HQ retrata este transe e seu significado

Este é o posfácio do livro Utopia – As revoluções são impossíveis até se tornarem inevitáveis, de Raquel Varela e Robson Vilalba, publicado pela Editora Veneta, parceira editorial de Outras Palavras. Se você apoia nosso jornalismo, você pode comprar este e todos os títulos da editora com 20% de desconto. Sabia como apoiar o Outras Palavras . Assista a entrevista com Raquel Varela realizada pelo Outras Palavras

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A Revolução dos Cravos foi a mais profunda revolução social da Europa do pós-guerra até aos dias de hoje. O incrível tornou-se quotidiano. Portugal foi então, a par do Vietnã, o centro do mundo. Naqueles dezenove meses de tantas lutas políticas – e sim, a luta política é feita de embates acalorados, dissensos frontais, programas abertamente distintos –, o traço claro deste novo país foi a participação de milhões de pessoas na vida política, social e cultural. As disputas dentro do aparelho de Estado pelos partidos mais importantes – PS e PCP –, os holofotes diplomáticos internacionais que fizeram soar os alarmes da guerra fria e a reconstrução tensa das instituições não podem ofuscar aquele que é o dado mais importante desses dias – nunca tanta gente na história de Portugal decidiu tanto e nunca a política foi tão democrática.

Podemos elencar aqui o fim da guerra colonial, o fim da ditadura, da censura, das prisões políticas, do partido único, centenas de fábricas ocupadas em autogestão, as cooperativas, as nacionalizações de bancos, as greves de solidariedade, o ensino unificado, o serviço nacional de saúde, a segurança social… E a influência determinante na queda da ditadura dos coronéis na Grécia, no fim do franquismo, o “Mediterrâneo vermelho” como era então designado e temido pelas chancelarias ocidentais. De repente havia um país. A Europa do mundo do trabalho, que tinha vivido o Maio de 68, em Paris, vivia agora a Revolução dos Cravos, em Lisboa.

Mas o que fica, porém, destes dias, e essa é a história do Zé e do Jaime, e de milhões, dos mais de três milhões que participaram em greves, manifestações, comissões de trabalhadores, moradores e soldados, comissões democráticas, não são só os resultados, muitos dos quais, aliás, foram desfeitos. O que fica do que passou é uma ideia de futuro, de projeto, é quando as “pessoas passaram a sentir necessidades que não sabiam que tinham”, na frase épica do médico Bernardino Páscoa. É que tudo isto foi realizado com uma participação política inédita dos que-vivem-do-trabalho, rompendo o ciclo de alienação, desmotivação, concorrência, e enlaçando um novo rumo, com sentido do trabalho, da cooperação, do entusiasmo, o que faz com que até seja difícil encontrar naqueles dias fotografias sem gente a rir. A vida passou a ser um espaço de sonhos.

Sim, há alternativa. O “vai-se andando”, “mais ou menos”, “faz-se o que se pode” foi substituído pelos médicos que abraçaram a comissão de moradores e foram com esta abrir um centro de saúde numa casa abandonada – ainda hoje existe esta extensão do centro de saúde no Seixal; quando as mulheres adultas foram para um piquete à noite e disseram que iam dormir fora de casa, sem autorização dos pais ou dos maridos; quando os professores ocuparam a escola privada de Alcácer do Sal, com os alunos dessa mesma escola a solidarizarem-se, para que os mais pobres pudessem estudar também. É, até hoje, a escola secundária pública. Chegaram à pólis.

Não insistamos no caos, que também existiu (e hoje, não vivemos num caos de desilusão, desmotivação, emigração, empobrecimento?). A democracia, a cooperação, a construção de um país em que estava tudo por fazer, foram a marca do biênio 1974-1975.

O poeta António Aleixo deixou-nos em verso esse caminho:

“O homem sonha acordado
Sonhando a vida percorre
E deste sonho dourado
Só acorda quando morre.”

A crise que vivemos agora – que é económica, política, cultural – é profunda.

É também a crise dos regimes políticos europeus atuais, expressa, entre outros fatores, no genocídio em Gaza, na guerra na Ucrânia, nos refugiados mortos no Mediterrâneo, na ausência de direito ao trabalho, no quase constante aumento da abstenção eleitoral, na crise do bipartidarismo, e que se agravou em múltiplos aspetos depois de 2008, e na ascensão da extrema-direita; no rentismo baseado nas dívidas “públicas” de acionistas privados, salvos das suas crises com a degradação do modo de vida da ampla maioria da população. O fim do “modelo social europeu” pode transformar-se numa crise do próprio Estado. Mas, quando em 1974, houve uma crise do próprio Estado – que destinava à guerra colonial 40 por cento do orçamento e as pessoas não tinham casa onde viver, os trabalhadores fizeram da crise oportunidade e com lutas sociais impuseram uma transferência, inédita na história de Portugal, do capital para o trabalho (na ordem dos 18 por cento). As crises, mais do que desfechos inevitáveis, são cruzamentos, escolhas. A história é feita pelos homens e mulheres. Há sempre alternativa.

A extrema-direita, parteira da barbárie nazi, apresenta-se hoje com força eleitoral. Levada ao colo midiaticamente – porque tem esse efeito de papão, “aguentem o neoliberalismo porque a alternativa é o fascismo” –, a extrema-direita é, na verdade, tudo isto: pobreza, desemprego, guerras, mas com ditadura. É a couraça que promove o desemprego, proibindo sindicatos, que persegue imigrantes; é a guerra, sem falsas diplomacias; é a corrupção, institucionalizada na desigualdade jurídica que defendem.

Quando somos adultos, temos obrigação de deixar de acreditar no papão e escolher o que queremos comer. As crises são momentos históricos de escolhas, são uma encruzilhada. São, na história, momentos em que a barbárie é tão possível como o são os projetos de emancipação sociais. Foi isso que nos ofereceu a Revolução dos Cravos – no meio da mais intensa crise econômica do pós-guerra, chamada então de choque petrolífero, os trabalhadores, manuais e intelectuais, disseram que não aceitavam as “medidas de saída da crise” (de recuperação das taxas de lucro, imobilizando riqueza) e impuseram um modelo baseado na cooperação. E fizeram-no democraticamente, debatendo, discutindo, votando, nas instituições públicas, mas também nos locais de trabalho. E essa foi a alternativa. Que permitiu, aliás, construir o Estado Social, dar segurança pelo acesso ao trabalho, reinventar o modo de vida.

Para onde vamos? Quais são hoje as prováveis mudanças, de desenvolvimento ou regressão social? Esta reposta só pode ser dada pelos projetos políticos de hoje. A história não faz nada por nós. Mas ela ensina-nos. A Revolução dos Cravos ensinou-nos coisas extraordinárias: que se pode mudar de vida mudando o país, que as pessoas se transformam individualmente quando transformam a vida pública e política coletivamente; e que só se muda realmente o país quando se abraça a democracia participativa. Ensinou-nos que viver sem projetos ideológicos e políticos futuros, no fundo, expressão da resignação, é uma patologia social. Precisamos tanto de pão quanto de sonhar.

Os desafios que nos separam são imensos, entre o trabalho manual e o intelectual, entre o centro e a periferia, atravessados por questões tão complexas como o gênero, as migrações, as etnias, as línguas e as linguagens, o acesso à cultura, tão díspar, e a sustentabilidade social. Este ano, 50 anos depois do 25 de Abril, 52 pessoas têm uma riqueza equivalente à de metade de todas a humanidade.

Estamos à altura do tamanho dos desafios colossais que temos pela frente, como europeus e homens e mulheres do mundo?

Mesmo que a Terra pareça estar parada, ela move-se. Mas o mundo não muda sozinho para melhor. Se não mudarmos o mundo, o mundo mudar-nos-á a nós. Se um “otimista é um tolo”, como escreveu Ariano Suassuna, “e um pessimista um chato”, “bom mesmo é ser um realista esperançoso”, como ele rematava.

Como em Abril de 1974, desejamos hoje um mundo de liberdade e igualdade real – uma não vive sem a outra –, para que todos tenham segurança material e assim as diferenças sejam respeitadas e floresçam a diversidade, a arte, a criação, as relações humanas densas. A liberdade.

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